Yidish era uma menina búlgara de nove anos quando sua família, de origem judia, foi agraciada pela herança de um primo falecido, uma gráfica em Berlim, a efervescente e bela capital alemã. O ano era 1931.
Um número somente. Nada de extraordinário. Se a Alemanha, desde o fim da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), não enfrentasse uma enorme crise econômica e moral e os judeus, desde muito antes, não carregassem consigo o peso de suas origens, alvo de desconfiança e preconceito desde tempos imemoriais, até do próprio Egito.
Dois anos depois, porém, um novo chanceler é eleito na Alemanha. Um austríaco com inúmeros planos de grandeza e um desejo de construir um Terceiro Reich. Ele passou à história como o maior genocida de todos os tempos e nem mesmo o pior dos insultos é capaz de definir a cretinice e a canalhice dessa figura chamada Adolf Hitler. Que nem de humano deve ser chamado.
O nazismo subiu ao poder então. No entanto, quem pagou o preço foram todos aqueles que não se encaixavam na pureza ariana com a qual esse monstro sonhava.
Yidish era judia. Outros eram comunistas, homossexuais, ciganos, negros, deficientes e qualquer um que não fosse o desejado pelo padrão estúpido imposto.
A então menina começou a ver cada parte de sua rotina desfazer-se diante de seus olhos. Nem mesmo à escola ela podia ir mais. Judeus não tinham mais direito a nada, nem mesmo a carregar o próprio nome. O pior, porém, ainda estava por vir e a agora jovem Yidish veria de perto todos os horrores dos campos de concentração nazistas e da própria Segunda Guerra Mundial. Viveria situações humilhantes e degradantes que nenhuma pessoa mereceria, menos ainda apenas por ter nascido e ser do modo como é.
Ela foi Dalina, Bertha e por último, Sarah. É a última, que no fundo é ainda aquela menina, Yidish, que sonhava com a liberdade e o balé, agora no ano de 1995, a narrar sua história de sobrevivência, nos fazendo andar pelo Beco da Ilusão.
A primeira coisa sobre esse livro é: ele é baseado em milhares de histórias reais. Nem todas com finais felizes.
A segunda coisa sobre ele é: a Mundo Uno Editora está de parabéns pela linda edição. A capa, belíssima, mostra um cenário belo e ao mesmo tempo desolado. A diagramação está muito bem feita, a fonte é de bom tamanho e excelente para leitura, combinando com páginas amareladas com a intenção de não cansar a vista. Especialmente para quem, como eu desde novembro, usa óculos.
A terceira e isso vai durar o resto do texto: esse não é um livro fácil de ler apesar da escrita muito fluida da autora mineira Mallerey Cálgara. Porque li todo em um período de pelo menos um dia, mas isso não significa que não foi sofrido porque foi.
Sofrido ver que existiu um período da História Mundial em que uma única pessoa (eu ME RECUSO a chamar o Hitler de gente porque ele podia ser qualquer coisa, exceto isso) foi capaz de mover meio mundo a uma guerra só porque queria fazer da Alemanha um império e antes disso, privar toda uma população dos direitos mais básicos só por eles serem quem eram. E não foram só judeus. Quem leu a História mais a fundo sabe que homossexuais, ciganos, negros, deficientes e outras minorias sociais foram condenadas ao extermínio em massa em nome da supremacia ariana, conceito deturpado e preconceituoso no qual muita gente ainda hoje acredita. Nada menos que mais de 66 milhões de mortos. Os prisioneiros dos campos de concentração, os que morreram lutando como soldados, os que foram assassinados em invasões e outras tantas atrocidades cometidas. Não só pelos nazistas, devo dizer, e vou ficar apenas por aqui com esse tópico.
Mais sofrido ainda é saber que isso, por mais que muita gente conteste fortemente, foi feito com conivência do próprio povo alemão, que por décadas sofreu as consequências das suas escolhas erradas. Eu poderia dizer que eles mereceram? Poderia. Mas aí estaria sendo cruel com quem não merece porque votar errado todo mundo vota, até no Brasil. Devo dizer, somos o segundo país NO MUNDO a ter uma noção parca de realidade, segundo as estatísticas. Ainda, não é porque as pessoas do passado erraram que as do presente têm necessariamente que pagar apesar de muita gente, infelizmente, concordar com isso. Portanto, escutem isso: a História serve para que não repitamos os erros do passado, assim, não é justificativa para discriminar os outros usando insultos e agressões.
Lendo Beco das Ilusões, é nítida a extensa pesquisa que a autora fez para compor o livro e seus personagens, cujas atitudes e escolhas nos fazem amá-los, odiá-los ou ficar com sentimentos contraditórios com relação a eles. Ainda mais quando, no passar da trama, que se divide entre três fases diferentes, distribuídas em dezoito capítulos, descobrimos que mesmo no exército nazista existiam pessoas capazes de ter compaixão e empatia, inclusive ajudando prisioneiros a fugir, mas, sendo obrigados a cometer atos muito ruins para manter o disfarce e evitar serem descobertos. Ainda por cima, antes de cada capítulo há uma foto daquela época e uma frase do Hitler. Impossível não querer, como o próprio Erdmann narra no capítulo com seu ponto de vista, não querer ele vivo para matá-lo*² todas as vezes porque nunca nessa vida vi criatura mais odiosa do que esse "austríaco louco" (palavras de alemães, não minhas porque as que eu falo são bem mais pesadas).
No livro, sendo a figura de Franklin, que tem um motivo muito especial para não apenas ajudar a protagonista, mas também muitos outros prisioneiros. Pensem em como era para ele conviver com todas essas atrocidades e ainda ajudar alguns prisioneiros mesmo sabendo que podia ser rechaçado. Pode ser que tenha sido pouca coisa, mas com certeza foi muito significativo a essas pessoas, que pelo menos puderam ter uma chance de seguir para uma nova vida longe daquele horror ainda que com muita dor no coração por aqueles que ficaram para trás.
Por sua vez, Sarah, a protagonista, vai narrando, com um olhar esperançoso e ao mesmo tempo profundamente abatido, os horrores que presencia e como se sente incapaz por não ser capaz de fazer tudo o que gostaria. Ela tem de se contentar em apenas ouvir as pessoas ou amenizar a dor delas com analgésicos que rouba dos armários. Isso sem contar que precisa se esconder sob outro nome e ocultar todos os sentimentos que afloram dentro dela se quiser sair com vida de mais um dia na insana guerra.
Pensem agora na quantidade de cicatrizes psicológicas que não ficaram daquela época não só na mente dela, mas na cabeça de outros milhares da vida real que tiveram a sorte de escapar com vida dos campos de concentração. Imaginem essas pessoas tendo que conviver com essa dor, não raramente tendo episódios de depressão, insônia e outros e ainda saber que no mundo moderno existe gente que ainda pensa tão pequeno e baixo. Se isso não é motivo suficiente para se achar a guerra e o preconceito, sem contar as outras mazelas, as coisas mais insanas do mundo, então falhamos como humanidade.
Em Beco da Ilusão, seu título é justificado por uma razão que prefiro deixar para vocês descobrirem quando leiam, mas que é compreensível apesar de no início pensarmos que Sarah ainda vai ter que sofrer mais ainda. Não de modo direto, mas com a incerteza de não saber se vai viver até o dia seguinte, principalmente, porém, não tendo ideia se algum dia vai reencontrar os familiares de quem foi separada de modo tão cruel. O que, devo dizer, torna a leitura mais angustiante ainda, porque torcemos profundamente para que pelo menos uma pessoa ela possa rever e com esse alguém possa buscar uma nova vida em algum lugar longe daquele caos. Sem contar Erdmann, o rapaz por quem se apaixonou e com quem sonha em construir uma família feliz.
Apesar dos personagens secundários serem poucos, eles são muito importantes para manter Sarah a salvo e com a mente no lugar. Eles mostram também que, apesar dos horrores impostos pela guerra, ainda existe lugar para o melhor da humanidade e que mesmo com todas as chances contra, a fé e a esperança ainda são importantes armas na luta contra a tirania e a maldade.
Por fim, se você deseja encontrar um excelente romance histórico que faça Game of Thrones e semelhantes parecerem surreais demais para serem de verdade, Beco da Ilusão é o livro que você procura e que a Lady Trotsky indica.
Um número somente. Nada de extraordinário. Se a Alemanha, desde o fim da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), não enfrentasse uma enorme crise econômica e moral e os judeus, desde muito antes, não carregassem consigo o peso de suas origens, alvo de desconfiança e preconceito desde tempos imemoriais, até do próprio Egito.
Dois anos depois, porém, um novo chanceler é eleito na Alemanha. Um austríaco com inúmeros planos de grandeza e um desejo de construir um Terceiro Reich. Ele passou à história como o maior genocida de todos os tempos e nem mesmo o pior dos insultos é capaz de definir a cretinice e a canalhice dessa figura chamada Adolf Hitler. Que nem de humano deve ser chamado.
"- Tudo o que a memória já amou ficou eterno. E entre tudo o que você poderia ser para mim na vida, a vida escolheu torná-lo saudade... - A voz soa trêmula, suspiro ao deslizar os dedos sobre o recorte de jornal contornando o rosto de Erdmann." - Pág. 11
O nazismo subiu ao poder então. No entanto, quem pagou o preço foram todos aqueles que não se encaixavam na pureza ariana com a qual esse monstro sonhava.
Yidish era judia. Outros eram comunistas, homossexuais, ciganos, negros, deficientes e qualquer um que não fosse o desejado pelo padrão estúpido imposto.
A então menina começou a ver cada parte de sua rotina desfazer-se diante de seus olhos. Nem mesmo à escola ela podia ir mais. Judeus não tinham mais direito a nada, nem mesmo a carregar o próprio nome. O pior, porém, ainda estava por vir e a agora jovem Yidish veria de perto todos os horrores dos campos de concentração nazistas e da própria Segunda Guerra Mundial. Viveria situações humilhantes e degradantes que nenhuma pessoa mereceria, menos ainda apenas por ter nascido e ser do modo como é.
Ela foi Dalina, Bertha e por último, Sarah. É a última, que no fundo é ainda aquela menina, Yidish, que sonhava com a liberdade e o balé, agora no ano de 1995, a narrar sua história de sobrevivência, nos fazendo andar pelo Beco da Ilusão.
A primeira coisa sobre esse livro é: ele é baseado em milhares de histórias reais. Nem todas com finais felizes.
A segunda coisa sobre ele é: a Mundo Uno Editora está de parabéns pela linda edição. A capa, belíssima, mostra um cenário belo e ao mesmo tempo desolado. A diagramação está muito bem feita, a fonte é de bom tamanho e excelente para leitura, combinando com páginas amareladas com a intenção de não cansar a vista. Especialmente para quem, como eu desde novembro, usa óculos.
A terceira e isso vai durar o resto do texto: esse não é um livro fácil de ler apesar da escrita muito fluida da autora mineira Mallerey Cálgara. Porque li todo em um período de pelo menos um dia, mas isso não significa que não foi sofrido porque foi.
"A situação começou a ficar pior para os comunistas quando o Reichstag foi incendiado. A acusação recaiu sobre eles com a alegação de que estavam conspirando contra o governo alemão. Após ouvir o noticiário e contar para a mamãe, ela desceu as escadas feito louca. Quase se jogou do andar de cima só para chegar embaixo mais rápido. Saiu gritando histericamente pelo Abner e por papai. Ambos saíram do escritório assustados com a gritaria." - Pag. 55
Sofrido ver que existiu um período da História Mundial em que uma única pessoa (eu ME RECUSO a chamar o Hitler de gente porque ele podia ser qualquer coisa, exceto isso) foi capaz de mover meio mundo a uma guerra só porque queria fazer da Alemanha um império e antes disso, privar toda uma população dos direitos mais básicos só por eles serem quem eram. E não foram só judeus. Quem leu a História mais a fundo sabe que homossexuais, ciganos, negros, deficientes e outras minorias sociais foram condenadas ao extermínio em massa em nome da supremacia ariana, conceito deturpado e preconceituoso no qual muita gente ainda hoje acredita. Nada menos que mais de 66 milhões de mortos. Os prisioneiros dos campos de concentração, os que morreram lutando como soldados, os que foram assassinados em invasões e outras tantas atrocidades cometidas. Não só pelos nazistas, devo dizer, e vou ficar apenas por aqui com esse tópico.
Mais sofrido ainda é saber que isso, por mais que muita gente conteste fortemente, foi feito com conivência do próprio povo alemão, que por décadas sofreu as consequências das suas escolhas erradas. Eu poderia dizer que eles mereceram? Poderia. Mas aí estaria sendo cruel com quem não merece porque votar errado todo mundo vota, até no Brasil. Devo dizer, somos o segundo país NO MUNDO a ter uma noção parca de realidade, segundo as estatísticas. Ainda, não é porque as pessoas do passado erraram que as do presente têm necessariamente que pagar apesar de muita gente, infelizmente, concordar com isso. Portanto, escutem isso: a História serve para que não repitamos os erros do passado, assim, não é justificativa para discriminar os outros usando insultos e agressões.
"Aos poucos minha visão fica turva e a imagem que passo a ter à minha frente é outra. Por um momento achei que poderia ser feliz, esquecer o passado, porém, as lembranças voltam para a apresentaçãodo segundo ato. A felicidade não existe*, é apenas uma ilusão. O que existe são as decisões que tomamos, e elas fazem com que os momentos se tornem preciosos." - Pág. 120
"O dia passou se arrastando pela janela do carro. A chuva só nos atingiu com maior intensidade quando chegamos à fronteira da Alemanha. Usávamos o carro dos soldados que matamos. Quando vi seus corpos caídos, tive vontade de atirar mais. Queria que se levantassem para que eu pudesse matá-los de novo. Nunca pensei que pudesse sentir tanto ódio. Por um instante, eu os odiei mais do que ao próprio Führer." - Pág. 229
No livro, sendo a figura de Franklin, que tem um motivo muito especial para não apenas ajudar a protagonista, mas também muitos outros prisioneiros. Pensem em como era para ele conviver com todas essas atrocidades e ainda ajudar alguns prisioneiros mesmo sabendo que podia ser rechaçado. Pode ser que tenha sido pouca coisa, mas com certeza foi muito significativo a essas pessoas, que pelo menos puderam ter uma chance de seguir para uma nova vida longe daquele horror ainda que com muita dor no coração por aqueles que ficaram para trás.
Por sua vez, Sarah, a protagonista, vai narrando, com um olhar esperançoso e ao mesmo tempo profundamente abatido, os horrores que presencia e como se sente incapaz por não ser capaz de fazer tudo o que gostaria. Ela tem de se contentar em apenas ouvir as pessoas ou amenizar a dor delas com analgésicos que rouba dos armários. Isso sem contar que precisa se esconder sob outro nome e ocultar todos os sentimentos que afloram dentro dela se quiser sair com vida de mais um dia na insana guerra.
"Fiquei me perguntando o que aquelas pessoas indefesas teriam feito contra o Führer para merecem tal vida. A resposta surgiu num estalo. Nada. Não fizeram nada. Tinham apenas nascido." - Pág. 169 (Sim, eu devo ter visto essa quote umas quantas vezes nas resenhas que li sobre esse livro, mas vamos combinar, é uma pergunta que até hoje o mundo inteiro se faz por mais que a resposta pareça defintiva.)
Pensem agora na quantidade de cicatrizes psicológicas que não ficaram daquela época não só na mente dela, mas na cabeça de outros milhares da vida real que tiveram a sorte de escapar com vida dos campos de concentração. Imaginem essas pessoas tendo que conviver com essa dor, não raramente tendo episódios de depressão, insônia e outros e ainda saber que no mundo moderno existe gente que ainda pensa tão pequeno e baixo. Se isso não é motivo suficiente para se achar a guerra e o preconceito, sem contar as outras mazelas, as coisas mais insanas do mundo, então falhamos como humanidade.
Em Beco da Ilusão, seu título é justificado por uma razão que prefiro deixar para vocês descobrirem quando leiam, mas que é compreensível apesar de no início pensarmos que Sarah ainda vai ter que sofrer mais ainda. Não de modo direto, mas com a incerteza de não saber se vai viver até o dia seguinte, principalmente, porém, não tendo ideia se algum dia vai reencontrar os familiares de quem foi separada de modo tão cruel. O que, devo dizer, torna a leitura mais angustiante ainda, porque torcemos profundamente para que pelo menos uma pessoa ela possa rever e com esse alguém possa buscar uma nova vida em algum lugar longe daquele caos. Sem contar Erdmann, o rapaz por quem se apaixonou e com quem sonha em construir uma família feliz.
"– Ah, Yidish, minha Yidish! Ver você inconsciente foi aterrador. Me senti impotente. Mas segurei sua mão fria e fechei os olhos num desejo silencioso de que todo o seu sofrimento acabasse logo. Infelizmente você estava ali, delirante e febril, tão frágil e abatida, e tudo por minha culpa. Era imperdoável, mas tão real quanto a vontade de acabar com a minha própria existência. Minha amada, vê-la inconsciente sangrou meu coração e a dor foi lancinante. Temi que não se recuperasse e, se isso acontecesse, eu jamais me perdoaria. Não conseguiria passar por todas as atrocidades dessa vida cruel e miserável sem você que é meu porto seguro, minha esperança de dias melhores. Eu não teria forças para abrir os olhos a cada amanhecer e ver o sol brilhar sabendo que causei a sua morte. Ah, meu amor, depois de tanto velar o seu sono agitado, agora posso respirar aliviado. As lágrimas são de felicidade por saber que muito em breve a verei com a mesma alegria contagiante que eu tanto amo. – Detive meus olhos em sua boca perfeita e fui capaz de ver uma ameaça de sorriso. – Yidish, como tive medo de perdê-la! Eu te amo!" - Pág. 216
Apesar dos personagens secundários serem poucos, eles são muito importantes para manter Sarah a salvo e com a mente no lugar. Eles mostram também que, apesar dos horrores impostos pela guerra, ainda existe lugar para o melhor da humanidade e que mesmo com todas as chances contra, a fé e a esperança ainda são importantes armas na luta contra a tirania e a maldade.
Por fim, se você deseja encontrar um excelente romance histórico que faça Game of Thrones e semelhantes parecerem surreais demais para serem de verdade, Beco da Ilusão é o livro que você procura e que a Lady Trotsky indica.
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