sexta-feira, 13 de maio de 2016

Por Nuccia de Cicco - Blog As 1001 Nuccias


Eu sou terrivelmente apaixonada por livros com conteúdo histórico, sejam ficcionais ou não. Não que eu não goste de fantasia e distopia, pelo contrário, adoro esses mundos novos. Mas também acho importante me inteirar sobre o nosso mundo. Especialmente a história dele, pois conhecimento prévio é ensinamento, uma forma de não repetirmos erros sociais.


Beco da Ilusão é um romance dramático. Narrado quase totalmente pela protagonista Sarah Wainness, inicia-se com ela se preparando para assistir à apresentação de ballet de sua neta, já adulta. Enquanto aguarda o início do espetáculo, sua mente começa a vaguear por lembranças de seu passado. Um passado obscuro e tenebroso.

Sarah Wainness nasceu Yidish. Ao receberem uma herança de um tio distante, Yidish e sua família (pai, mãe, 3 irmãos, a mais velha fica na terra natal, pois se casou) se mudam da Bulgária para Berlim. Seu pai, sapateiro, assume então a administração de uma gráfica no coração da nova cidade. Aos 9 anos, ela conhece Berlim no auge de sua beleza, se apaixona pelo Opernplatz, o prédio da Ópera Estatal de Berlim e pelo ballet, uma dança leve, graciosa, linda e genuína.

"Dentro desse refúgio particular, rodopiava, vendo as coisas passarem. O silêncio imperava em minha mente, fazendo-me viajar para uma vida diferente, se sonhos realizados, onde eu e o balé éramos um só."

Após alguns dias, conheceu Anton e Erdman, dois primos cujos laços de amizade com a menina se tornaram profundos e inabaláveis, de tal forma que eles se ajudavam e protegiam em tudo. Sapeca, espontânea e sonhadora, Yidish escuta novidades do governo em seu radinho e escondida nos corredores da casa, durante longas reuniões do pai com os amigos da gráfica. Ela não compreende ao certo o que ouve, mas sabe que algo está para acontecer.

"O Senhor Vogel frequentou a nossa casa por mais de dois meses até que um dia disse que não voltaria mais. Falou que não era certo receber dinheiro de judeu, que preferia ficar desempregado e passar fome a ter que se humilhar."

E então, em uma manhã tenebrosa, depois de incêndios na capital, Hitler declara guerra contra os judeus residentes na Alemanha. Nazistas invadem as casas, separam famílias e jogam todos em ônibus para levar a campos de concentração. Separada de sua família, a agora adolescente de 14 anos tem de enfrentar sozinha tudo o que está destinado a ela, por causa da cultura que possui.

"Ouvimos barulhos terríveis de picaretas demolindo portas, quebrando vidros, seguido por toda uma gritaria. Ali, naquele momento, soube o que é o medo de morrer."

Devido a um segredo revelado, Yidish recebe um tipo de proteção: uma identidade alemã. No início dessas viagens, ela não sabe exatamente quem a protege e sabe menos ainda a causa disso. A cada transferência de campo, um novo nome, uma nova identidade, mas os mesmos martírios. No caos do Holocausto, ninguém era poupado se não fosse alemão: negros, judeus, homossexuais, deficientes. Os nazistas sentiam prazer em ferir, humilhar, machucar e matar outras pessoas.

Tudo o que ela desejava era encontrar sua família, seus irmãos, seus amigos, seu amor. E sumir da Alemanha.

Analisemos os personagens. No livro, vemos nossa protagonista ser uma criança, uma jovem, uma mulher, uma senhora. Ela é forte, lutadora, e inocente, mesmo após tantas atrocidades. Nunca deixou de procurar a família e seu amor, mesmo sabendo que seria praticamente impossível encontrá-los vivos. Aprendeu a sobreviver o máximo que pôde e a acreditar na esperança, mesmo quando não havia luz alguma no túnel.

Desde a primeira página, sabemos que a vida de Sarah é complexa e que sua história será regada de grandes personagens. Assim, todos os personagens secundários são tão importantes quanto ela. Participam amplamente da história, mesmo não aparecendo nela o tempo inteiro, afinal, nossa protagonista se perde e se vê sozinha por uma boa parte da narrativa. Mas cada vez que um novo personagem surge ou um antigo reaparece, não é sem motivo, sem ligação. Anton e Erdman são os melhores amigos que uma menina judia perdida nesse caos poderia ter.

Sobre a parte técnica, devo avisar que é tudo lindo, tudo maravilhoso, caprichado e.... feito pela autora! Comecemos com a capa: como uma fotografia em preto e branco, temos em primeiro plano a imagem de uma estrada de ferro em uma cidade de interior. Ao longe, árvores, uma estação velha e muita neblina ou fumaça, dando um tom bem sombrio. Em segundo plano, no canto superior direito, a modelo representando nossa protagonista. Curiosidade: a modelo da foto é a filha da autora! O título do livro e o nome da autora estão na metade inferior da capa, em vermelho e branco, um destaque perfeito.

diagramação interna é um espetáculo! Antes de cada capítulo, há uma página negra com uma citação de Hitler e uma imagem representativa do conteúdo e do evento. Isso é colocado como se fosse algo emoldurado e a moldura em si é feita de arabescos na cor branca. Logo a seguir, o início do capítulo nos é apresentado com seu título e numeração. 

Muitos diálogos são escritos em alemão original, com a tradução logo a seguir, pelo próprio personagem ou em parenteses. Além disso, há uma lista de notas ao final do livro, que explica nomes, expressões, datas e locais citados na narrativa, por ordem de aparecimento (numerados). A revisão também foi muito bem feita, sei que encontrei alguns errinhos, mas não faço ideia de quais, de tão envolvida que estive na história.

E qual a minha opinião

Cara... eu vou ter de ser sucinta, ou passarei éons elogiando esse livro. Foi surpreendente, arrebatador, chocante e lindo, tudo junto e misturado.

Começando pela base, pela pesquisa, pela veracidade dos fatos. A autora nos transporta ao tempo e espaço dos acontecimentos de tal forma que parece que ela própria esteve lá. Junte a isso, o fato de a narrativa ser rica em detalhes e observações que faz com que você viva e sinta o mesmo que os personagens. Você se emociona, rodopia, sofre, se choca, luta, chora e transcende.

"Por um momento de lucidez, senti um calor percorrer o corpo ao me dar conta de que ele era um garoto, mesmo sendo o Erdmann, e que segurava minha mão. (...) Senti a primavera despertando em todo meu corpo e alma. Este seria um momento que ficaria guardado em minha memória até a hora da morte."
Logo no início, a autora tece considerações sobre a pesquisa que fez. Diz que buscou descrever o mais realista possível, mesmo não concordando com o que estava escrito. É seu papel como autora repassar os fatos históricos registrados sem modificá-los, mas não é seu papel concordar com eles.

Mesmo um detalhezinho ínfimo no início do livro nos faz entender as reviravoltas dos últimos capítulos. E não são poucas reviravoltas, não! Os sentimentos gerados pela leitura mudam em turbilhões e nos modificam também.

Não há como não torcer pelas conquistas da pequena e forte Yidish, não há como não ter esperança que ela encontre sua família. Ou como não desejar que encontra e viva o amor que tanto sente falta, tanto pelo amigo, quanto pela dança. Enquanto está nas garras dos campos de concentração, ela sente frio, fome, dor, corre riscos, trabalha e, mesmo assim, consegue ser solidária.

O que mais posso dizer sem entregar a história toda de bandeja?... Bem, o título do livro é explicado em uma parte da narrativa, mas eu não posso descrever, pois seria estragar a leitura de vocês. Só uma dica: a ilusão nem sempre é boa, mas é útil e ajuda a sobreviver.

O final do livro foi espetacular! Não que tenha sido inesperado. Parando para pensar, até que foi um final bem condizente, mas a forma como foi passado tem todo o diferencial.

É impossível pra você não se chocar, não sentir um aperto no peito, a angústia com os relatos. A dor e a humilhação impostas a seres humanos que não fizeram efetivamente nada direto contra o governo alemão. Nada, a não ser existirem. A empatia desperta a cada página e faz as emoções aflorarem a cada parágrafo. A não ser que você seja um psicopata, daí... 

No mais, é um livro fantástico, que vale a pena ser lido. Sei que ele foi publicado em alemão e está na Biblioteca de Berlim e é recomendado como fonte de pesquisa, tam anha a sua fidelidade. Mais do que uma história de ficção, é um ensinamento, uma luz para que não retornemos àquela escuridão.










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